quarta-feira, 23 de maio de 2012

António Lobo Antunes fala do Sr. José Águas


Há mais de trinta anos que não assisto a um jogo de futebol. 

Não conheço os estádios novos, vejo, às vezes, um bocadinho na televisão. Mas entre os dez e os vinte anos não falhava um jogo do Benfica. E não falhei enquanto Águas jogou. 

Claro que não era apenas Águas: era Costa Pereira, Germano, Ângelo, Simões, Eusébio, Cavém, o grande Mário Esteves Coluna que Otto Glória considerava o melhor jogador português, outros mais artistas que jogadores, como José Augusto, por exemplo, a todos estou grato pela beleza e a alegria que me deram, porém nunca admirei tanto um atleta como admirei José Águas. 

Para quê, portanto, ir ao futebol se ele já não se encontra no estádio? 

Era a elegância, a inteligência, a integridade, o talento, e ao pensar em escrever o meu desejo era ser o Águas da literatura. 

Vi Pelé, Didi, Nilton Santos, Puskas, Di Stefano, Santamaria, tantos outros génios, no tempo em que o futebol não era ainda uma indústria nem os jogadores funcionários competentes, comandados por esse horror a que chamam técnicos: era pura criação, uma actividade eufórica, uma magia cinzelada, uma nascente de prazer, uma inspiração, um entusiasmo. 

Águas foi tudo isso e, muito novo, ganhou o respeito dos colegas, dos adversários, dos jornalistas da época, que os havia de grande qualidade, Carlos Pinhão, Carlos Miranda, Aurélio Márcio, Homero Serpa, tantos outros. 

Não jogava futebol: criava futebol, respirava futebol, inventava futebol, e teria sido um privilégio para mim conhecê-lo. 

Não para falar com ele, para o ouvir. A sua beleza física invulgar distinguia-o de todos os outros, a forma de se mover em campo era única, a autoridade sobre os companheiros natural e humilde. 

Os miúdos que iam comigo à bola chamavam-lhe senhor Águas, sem sonharem que era desse modo que Simões e Eusébio o tratavam, como tratavam Coluna. 

Senhor Águas, senhor Coluna. Reconhecíamo-lo, do alto do terceiro anel, no estádio de então, onde, de tão longe, os jogadores minúsculos, pelo modo de correr, se deslocar no campo, passar, rematar, reconhecíamo-lo pelos seus golpes de cabeça, inimitáveis, pelo sentido da ocupação do espaço, pela simplificada geometria do seu futebol. 

Não tinha a garra de Ângelo ou Cavém, a força de Coluna, o gigantesco talento de Eusébio, o poder do drible de Simões, a velocidade de José Augusto: era uma espécie de rei sereno e eficaz, um aristocrata perfeito. 

Até a andar os olhos ficavam presos nele, na harmonia dos gestos, no modo de ajeitar bola, e eu, criança de dez anos ou adolescente de quinze, pensava tenho de trabalhar mais esta página, ainda não chego aos calcanhares de José Águas. 

Escrever como ele jogava, com a mesma subtileza e a mesma eficácia.

Escrever como a equipa do Benfica, umas vezes à Ângelo, outras à Germano, outras à Coluna, e finalizar à Águas. Nunca deve ter ouvido falar em mim nem podia adivinhar que um garoto qualquer o tomava não apenas como mestre de futebol mas como mestre de escrita. 

Só, mais tarde, certos saxofonistas de jazz, Bird, Coltrane, Webster, Coleman, Hodges, alguns mais, tiveram, sobre o meu trabalho, influência semelhante. 

Mas Águas foi o meu primeiro e indisputado professor: escreve como ele joga, meu estúpido, aprende a escrever como ele jogava. 

Como morava em Benfica via-o, às vezes, no autocarro do clube e ficava, pasmado de admiração, a fitá-lo. 

Isto lembra-me o meu irmão Nuno chegando a casa de dedo no ar

- Toquei no Eusébio, toquei no Eusébio

como provavelmente, eu o faria, porque na infância e na adolescência o futebol era, para além de uma aprendizagem do mundo, um prazer infinito. 

A cor dos equipamentos

(o meu amigo Artur Semedo:

- Não sou um homem às riscas, sou homem de uma cor só)

a entrada em campo, o hino, tudo isto me exaltava e fazia feliz. 

E as vitórias, comemoradas em Benfica com bebedeiras eufóricas. 

Uma das minhas glórias secretas, confesso-o agora, consiste em ter visto a fotografia do meu pai no balneário do hóquei em patins do Benfica, de ele ter estado no Campeonato da Europa de 1936, em Estugarda, com vinte ou vinte e um anos, e de brincarmos com uma caixa de lata cheia de medalhas, a que o meu pai não dava importância alguma e eu considerava inestimáveis.

Há pouco, a minha mãe

- O que faço eu a isto?

exibindo-me uma espécie de troféu ou de placas num estojo, que alguns anos antes de morrer a Federação de Patinagem lhe entregou, juntamente com outras antigas glórias, e que me recordo de o meu pai, que não saía, ir receber com satisfação secreta.

Mas, claro, eu era só filho do Lobo Antunes, não era filho do Águas, e ainda sei medir as distâncias. 

Portanto, o que vou eu fazer a um campo de futebol se ele já não joga? 

Seguir os funcionários competentes de um negócio? 

Assistir ao bailado dos técnicos? 

Ver a fantasia substituída pela sofreguidão, a ambição pela avidez, o amor ao clube pela violência idiota? 

Claro que continuo a querer que o Benfica ganhe. Claro que sou, como em tudo o resto, parcial, sectário, por vezes sem bom senso algum. 

Mas há séculos que não sofro com as derrotas e, sobretudo, não choro lágrimas sinceras com elas: estou-me nas tintas. 

Contudo voltaria a trotar, radiante, para assistir à entrada em campo de Costa Pereira, Mário João, Germano, Ângelo, Cavém, Cruz, José Augusto, Eusébio, Águas, Coluna e Simões, a agradecer-lhes o facto de me terem, durante anos e anos, colorido a existência. 

E talvez no fim do jogo, postado junto ao autocarro, quando os jogadores saíssem do balneário, o senhor Águas me apertasse a mão.

-António Lobo Antunes, Visão.pt, 22 Junho 2011 

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